Procissão
cultural encena lendas do folclore popular nas ruas de Mariana
- 26/03/2016 12h19
- Mariana (MG)
Leo
Rodrigues - Correspondente da Agência Brasil
Uma das atrações da Semana Santa de Mariana é a
Procissão das Almas, manifestação cultural que ocorre na madrugada da
sexta-feira para o sábadoLéo Rodrigues/Agência Brasil
Nem só de religiosidade se faz a
Semana Santa em Mariana (MG). Na noite de ontem (25), quando se celebrou
a Sexta-Feira da Paixão, um grupo de 60 pessoas saiu às ruas para encenar lendas
do folclore popular da cidade. Acompanhada sempre por olhares de uma centena de
curiosos, a Procissão das Almas carrega uma tradição de aproximadamente 35
anos.
O cortejo é organizado pelo
Movimento Renovador, uma iniciativa sociocultural independente cujo objetivo é
contribuir para a preservação do patrimônio material e imaterial da Mariana.
"Nós realizamos pesquisas sobre os elementos tradicionais e folclóricos da
sabedoria popular", explica a integrante do movimento e uma das coordenadoras
Procissão das Almas, Hebe Maria Rola Santos.
Na Procissão das Almas, as pessoas se vestem todas
de branco, escondendo seus rostos sob um capuz. Elas carregam um osso e uma
vela. Léo Rodrigues/Agência Brasil
Aos 84 anos, Hebe é também
professora de literatura emérita da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Fascinada por histórias e contos populares, ela conta casos curiosas como a de
um homem com dificuldades de locomoção que, após sete anos participando da
Procissão das Almas, apareceu sem muletas na penúltima edição. "Ele jura
que foi curado pelo nosso cortejo. Vou dizer o que para ele?".
Duas lendas
Na Procissão das Almas, as
pessoas se vestem todas de branco, escondendo seus rostos sob um capuz. Elas
carregam um osso e uma vela e param em frente às igrejas que possuem cemitério
para entoar uma canção. No meio do grupo, um participante fantasiado de morte
segue carregando uma foice, enquanto Hebe Rola incorpora um personagem que
carrega um cesto cheio de penas, que são jogadas para o alto de tempos em
tempos. Esses três elementos, ossos, penas e cemitérios, se remetem a duas
lendas populares da cidade e uma história real.
Diz a primeira lenda que uma
senhora chamada Maricota passava seus dias na janela, fiscalizando a vida
alheia. Era uma fofoqueira, na linguagem popular. Como já estava com má fama
devido ao seu comportamento, decidiu mudar de bairro e também alterou seus
hábitos: em vez de ficar na janela durante o dia, Maricota passou a ser
vigilante noturna. Como Mariana tinha toque de recolher às 21h, o objetivo dela
era delatar os infratores.
Uma noite de sexta-feira
santa, viu uma procissão se aproximar, mas as pessoas escondiam o rosto dentro
do capuz. Ela ouvia lamúrias, som de bumbo, correntes arrastando e uma canção:
"Reza mais, reza mais, reza mais uma oração; reza mais, reza mais, pra
alma que morreu sem confissão". Como ela não conseguia identificar quem
estava ali, começou a ficar intrigada sobre o cortejo que até então
desconhecia.
O cortejo é organizado pelo Movimento
Renovador, uma iniciativa sociocultural independente cujo objetivo é contribuir
para a preservação do patrimônio material e imaterial da Mariana Léo
Rodrigues/Agência Brasil
De repente, um dos integrantes
veio em sua direção dizendo que a noite é dos mortos e pediu para que ela
guardasse a sua vela que mais tarde voltaria para buscar. Maricota ficou feliz
por ver que finalmente alguém lhe tinha confiança. Quando a procissão voltou, a
mesma figura novamente lhe procurou. Ela então foi buscar a vela, que
surpreendentemente havia se transformado em um osso de perna de defunto.
"O final possui mais de uma versão, sendo que em uma delas a fofoqueira
morre de susto e passa a integrar anualmente a procissão dos mortos",
conta Hebe.
A segunda lenda se
remete a uma senhora classificada como "barata de igreja" que é, na
linguagem local, a mulher que está sempre bajulando o padre. Com a contratação
de uma jovem moça para ajudar nas escrituras da paróquia, essa senhora fica
muito enciumada. Ela, então, começou a espalhar o boato de que a nova
funcionária era namorada do padre e, para conferir credibilidade à sua
história, colocou sapatos do sacerdote sob a cama da moça.
Com o escândalo, a jovem perdeu o
noivo, foi expulsa de casa pelos pais e virou andarilha. Um dia, ela retornou
bem maltrapilha e bateu à porta de uma casa solicitando água. Enquanto a
moradora atendia ao seu pedido, a moça caiu morta. O enterro foi organizado e
toda a cidade, curiosa, compareceu para ver a falecida. Quando a "barata
de igreja" chegou, o defunto sentou no caixão e disse "está aqui quem
me caluniou".
A Procissão das Almas, em Mariana, carrega uma
tradição de aproximadamente 35 anos. Léo Rodrigues/Agência Brasil
Desesperada, a senhora correu
atrás do padre, que lhe repreendeu e lhe deu um castigo inusitado: recolher
penas de aves em todas as casas onde há abatedouros no quintal, organizá-las em
balaios, deixá-las no alto do morro e esperar que um vento forte espalhe-as por
toda a cidade. Ao fim, conforme Hebe Rola, ela deveria recolher até a última
pena. "Segundo a lenda, em toda sexta-feira da paixão, ela transita pelas
ruas de Mariana coletando as penas".
A Procissão das Almas faz ainda
referência a uma história real, cujo personagem central é um maestro de
Mariana. Ele criou o hábito, em todo o Sábado de Aleluia, de se
dirigir aos cemitérios onde haviam músicos enterrados para tocar uma canção em
homenagem a eles.
Morte
Embora tenha um viés cultural, a
Procissão das Almas é também uma reza pelos que já se foram. Há pessoas na
cidade que, pela referência aos mortos, têm medo do cortejo. É o caso do
taxista Antônio Silva. "Na dúvida, prefiro evitar", disse.
Aos 23 anos, o estudante de
arquitetura Felipe D'ângelo superou o medo. Natural de Mariana, ele se vestiu
de branco e integrou o cortejo pela primeira vez. "Sempre tive vontade de
participar, mas desde criança eu tinha medo. Há uma mística na cidade em torno
dessa procissão. Acho legal a interação que existe com as praças e as igrejas
da cidade".
Já o psicólogo Fábio Maia, de
Belo Horizonte, escolheu Mariana para passar o feriado e ficou fascinado com o
cortejo. "Estou achando fantástico porque ela foge do lugar-comum. Eu
tenho 56 anos e nunca vi uma procissão igual na minha vida. Aliás, eu não sou
religioso, então essa é a única procissão que eu seguiria".
Mariana (MG) - Uma das atrações da Semana Santa de Mariana é a Procissão
das Almas, manifestação cultural que ocorre na madrugada da sexta-feira para o
sábado (Léo Rodrigues/Agência Brasil)
Edição: Aécio
Amado
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