quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Baby, Baby


"Baby", de Gal e Caetano: uma paródia elaborada da antropofagia

Categoria: Artigos
Criado: Terça, 02 Julho 2019 09:16
Publicado: Quarta, 03 Julho 2019 09:16
Escrito por Renato Contente (imagem: Hana Luzia e Luisa Vasconcelos)


 


Desde antes de Baby, antes mesmo de Domingo (1967), álbum bossanovista que marca a estreia dos dois, Gal já era um alter ego feminino do compositor. Talvez por isso mesmo, ela também era uma espécie de protótipo de modernidade para o qual ele projetava os experimentos estéticos que o inquietavam. O próprio “autoritarismo terno” do eu-lírico de Baby ao seu interlocutor, em relação ao que “você precisa” para obter um consumo cultural moderno, evoca o jogo de espelhos dos dois corações vagabundos.

Embora os gestos fundantes do Tropicalismo sejam as performances de Alegria, alegria, com Caetano Veloso ao lado dos Beat Boys, e Domingo no parque, com Gilberto Gil e os Mutantes, no Festival da Record de 1967, Baby marcou a popularização do movimento e facilitou sua adesão social. Afinal, com sua cínica ternura, absolveu o Tropicalismo de parte das controvérsias que o tinham como alvo.

Baby se despedia de 1968 como a terceira canção mais tocada do ano, atrás apenas de Hey Jude, dos Beatles, e Viola enluarada, de Marcos Valle e Milton Nascimento. A 29ª colocação nas paradas de sucesso também pertencia a Gal: Divino maravilhoso, de Caetano e Gil. A enfática chamada para estarmos atentos e fortes diante da ditadura militar havia sido apresentada pela primeira vez ao público no Festival da Record daquele ano. Com uma performance tropicalista até a medula, a cantora demarcava em público a persona política que assumiria na música popular brasileira até o início da década de 1970.

O sucesso de Baby havia garantido a Gal o privilégio de estrear em um álbum solo naquele mesmo 1968, mas, após o exílio de Caetano e Gil, a gravadora reagendou a estreia do disco já pronto para março do ano seguinte, temendo represálias.

Sem chão com a partida de seus principais alicerces afetivos e artísticos, Gal tomaria as rédeas da resistência estética à ditadura militar. O germe tropicalista permaneceria pulsante nos álbuns e espetáculos da cantora do período, mas sem ser um pastiche do movimento: estava mais próximo de uma decantação deste, um desdobramento, uma reelaboração estético-política que deu corpo ao desbunde.

O grande marco desse movimento foi justamente o espetáculo Gal a todo vapor, de 1971, que ganhou o acréscimo de Fa-tal em sua adaptação para disco. Urdida por momentos de melancolia, raiva e arroubos de alegria, a narrativa assinada pelo poeta Waly Salomão consistia em uma mensagem na garrafa para os exilados d’além-mar: meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco.

Eduardo Jardim sustenta que Gal a todo vapor demarcou o fim do Modernismo no Brasil, uma vez que as preocupações de raiz oswaldiana inexistiam na concepção do espetáculo. “Para seus criadores, o Tropicalismo – o movimento que os antecedeu – já tinha encerrado seu ciclo. Suas conquistas foram incorporadas e não era preciso voltar a elas”, escreveu o autor, no já citado livro de ensaios. Para ele, as canções de Waly e Jards Macalé presentes no espetáculo, em especial Vapor barato, são as realizações mais significativas dessa nova etapa – do fim de uma modernidade crítica para um abismo de definição imprecisa.

Sai de cena um terno e suave baby, I love you. O galante vocativo anglicano não morre, mas se transforma em uma honey baby. Um lamento gutural de um bicho triste, um grito agudo como a dor de quem o emite, projetado para ser ouvido a grandes distâncias. No espetáculo Recanto, de 2012, os dois vocativos coexistem na narrativa proposta para Gal por Caetano. No roteiro, as canções participam de um acirrado jogo semântico de luz e sombra em que não há vitoriosos nem perdedores definitivos. Há o Brasil, e nele urubus passeando entre girassóis, tigres e leões soltos nos quintais. Mas há também o importante lembrete de que precisa ter olhos firmes, pra este sol, para essa escuridão.

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