"Baby", de Gal e Caetano: uma paródia elaborada da
antropofagia
Categoria: Artigos
Criado: Terça, 02
Julho 2019 09:16
Publicado: Quarta, 03
Julho 2019 09:16
Escrito por Renato
Contente (imagem: Hana Luzia e Luisa Vasconcelos)
Desde antes de Baby, antes mesmo de
Domingo (1967), álbum bossanovista que marca a estreia dos dois, Gal já era um
alter ego feminino do compositor. Talvez por isso mesmo, ela também era uma
espécie de protótipo de modernidade para o qual ele projetava os experimentos
estéticos que o inquietavam. O próprio “autoritarismo terno” do eu-lírico de
Baby ao seu interlocutor, em relação ao que “você precisa” para obter um
consumo cultural moderno, evoca o jogo de espelhos dos dois corações
vagabundos.
Embora os gestos fundantes do
Tropicalismo sejam as performances de Alegria, alegria, com Caetano Veloso ao
lado dos Beat Boys, e Domingo no parque, com Gilberto Gil e os Mutantes, no
Festival da Record de 1967, Baby marcou a popularização do movimento e
facilitou sua adesão social. Afinal, com sua cínica ternura, absolveu o
Tropicalismo de parte das controvérsias que o tinham como alvo.
Baby se despedia de 1968 como a
terceira canção mais tocada do ano, atrás apenas de Hey Jude, dos Beatles, e
Viola enluarada, de Marcos Valle e Milton Nascimento. A 29ª colocação nas
paradas de sucesso também pertencia a Gal: Divino maravilhoso, de Caetano e
Gil. A enfática chamada para estarmos atentos e fortes diante da ditadura
militar havia sido apresentada pela primeira vez ao público no Festival da
Record daquele ano. Com uma performance tropicalista até a medula, a cantora
demarcava em público a persona política que assumiria na música popular
brasileira até o início da década de 1970.
O sucesso de Baby havia garantido a
Gal o privilégio de estrear em um álbum solo naquele mesmo 1968, mas, após o
exílio de Caetano e Gil, a gravadora reagendou a estreia do disco já pronto
para março do ano seguinte, temendo represálias.
Sem chão com a partida de seus
principais alicerces afetivos e artísticos, Gal tomaria as rédeas da
resistência estética à ditadura militar. O germe tropicalista permaneceria
pulsante nos álbuns e espetáculos da cantora do período, mas sem ser um
pastiche do movimento: estava mais próximo de uma decantação deste, um
desdobramento, uma reelaboração estético-política que deu corpo ao desbunde.
O grande marco desse movimento foi
justamente o espetáculo Gal a todo vapor, de 1971, que ganhou o acréscimo de
Fa-tal em sua adaptação para disco. Urdida por momentos de melancolia, raiva e
arroubos de alegria, a narrativa assinada pelo poeta Waly Salomão consistia em
uma mensagem na garrafa para os exilados d’além-mar: meu amor, tudo em volta
está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco.
Eduardo Jardim sustenta que Gal a
todo vapor demarcou o fim do Modernismo no Brasil, uma vez que as preocupações
de raiz oswaldiana inexistiam na concepção do espetáculo. “Para seus criadores,
o Tropicalismo – o movimento que os antecedeu – já tinha encerrado seu ciclo.
Suas conquistas foram incorporadas e não era preciso voltar a elas”, escreveu o
autor, no já citado livro de ensaios. Para ele, as canções de Waly e Jards
Macalé presentes no espetáculo, em especial Vapor barato, são as realizações
mais significativas dessa nova etapa – do fim de uma modernidade crítica para
um abismo de definição imprecisa.
Sai de cena um terno e suave baby,
I love you. O galante vocativo anglicano não morre, mas se transforma em uma
honey baby. Um lamento gutural de um bicho triste, um grito agudo como a dor de
quem o emite, projetado para ser ouvido a grandes distâncias. No espetáculo
Recanto, de 2012, os dois vocativos coexistem na narrativa proposta para Gal
por Caetano. No roteiro, as canções participam de um acirrado jogo semântico de
luz e sombra em que não há vitoriosos nem perdedores definitivos. Há o Brasil,
e nele urubus passeando entre girassóis, tigres e leões soltos nos quintais.
Mas há também o importante lembrete de que precisa ter olhos firmes, pra este
sol, para essa escuridão.
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