Festival
de Berlim: Don Cheadle vira diretor de obra-prima com Miles Ahead
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Ator fez
sua estreia atrás das câmeras no filme sobre Miles Davis
Por RODRIGO
FONSECA, do Omelete
Classificado já de obra-prima em
conversas de corredor do 66º Festival de Berlim, onde entrou em
exibição hors-concours, Miles
Ahead tornou-se um dos filmes de maior mobilização de
público e crítica do evento alemão deste ano, consagrando a estreia do
ator Don Cheadle, o James Rodhes da franquia Homem de Ferro,
como realizador. Ele também estrela a produção. A razão de o filme ter virado
um fetiche da Berlinale foi o recorte narrativo (corajoso para
um estreante) escolhido pelo astro da série House of Lies para
reconstituir a vida do trumpetista Miles Davis (1926-1991), um
mito do jazz, a partir de um dos períodos mais controversos de sua carreira:
uma fase da década de 1970 na qual ele se exilou dos palcos, compondo, mas sem
gravar, sob os efeitos da cocaína. A chegada de um suposto jornalista (Ewan
McGregor) mexe com sua inércia.
“Eu queria fazer um filme que
se parecesse com Miles Davis e não um filme sobre Miles Davis”,
explicou Cheadle em resposta ao Omelete. “Se fosse
para narrar a vida dele, passo a passo, seria melhor fazer um documentário. E,
fora isso, a história dele está nos livros. Eu tinha que trazer algo mais.
Tentei isso, incorporando seu imaginário à dramaturgia: por exemplo, na cena em
que ele e a mulher, Frances, caem, durante uma briga, a queda é retratada
com efeitos de montagem numa metáfora para a queda criativa dele, para sua
queda existencial. Tentei também trazer algo de seu jeito de ser, explosivo,
trincado e abusado, para a linguagem. E, mesmo na atuação, eu tinha que ‘estar
Miles Davis’ e não ‘ser Miles Davis’. Precisava de distanciamento”.
Um dos produtores do longa, Erin
Davis, filho de Miles, confessa sua surpresa ao ver a semelhança
que Cheadle alcançou ao reproduzir os trejeitos de seu pai. “Ele
conseguiu reproduzir a fala rascante do meu pai e seu gingado no jeito de
andar, o que não é fácil de alcançar sem cair numa imitação barata”,elogiava
o herdeiro do músico.
Embora embalado por música do começo
ao fim, com direito a uma participação do pianista Herbie Hancock tocando
com o próprio Cheadle ao trumpete, Miles Ahead tem
pinta de filme de gangster dos anos 1970, mostrando os perigos em que o
jazzista se envolve depois que uma fita com algumas gravações inéditas é
surrupiada de seu apartamento. A confusão começa quando ele recebe a visita do
(quase) repórter da revista Rolling Stone Dave Brill
(McGregor) pedindo uma entrevista. Na conversa com ele e na luta para reaver
seus originais, ele acaba se lembrando de sua relação com a dançarina
Frances Taylor com quem foi casado de 1958 a 68. O papel
ficou com a atriz Emayatzy Corinealdi, elogiada na Berlinale por
seu desempenho e sua beleza. Nessas idas e vindas no tempo, o ator retrata Miles com
uma caracterização mais polida e uma postura mais elegante.
“Eu trabalhei quase sete anos
no desenvolvimento desta estrutura narrativa que tiramos do papel buscando o
risco. Queria que o meu olhar de diretor tivesse o máximo de intensidade, pois,
só assim, eu poderia fazer jus à música de Miles. E esse processo só foi
possível porque eu tirei o melhor de cada um dos cineastas com quem trabalhei,
como Carl Franklin, Steven Soderbergh, Paul Thomas Anderson,
que foi com quem eu mais conversei. Mas, em geral, todos me falaram a mesma
coisa: Se joga e boa sorte!’. Mais nada”, brinca o ator, lembrando que
chamou McGregor pela necessidade de ter um “astro branco” para ajudar
a viabilizar o projeto em sua carreira mundial. “Pois é, isso ainda é uma
questão: filmes americanos sobre negros têm dificuldade de circular. Mas eu
consegui me ajustar a essa necessidade sem ferir nada do que queria. Esse
personagem me ajuda a fazer essa discussão sobre um jeito autêntico de ser.
Assim era Miles”.
Nesta manhã, na disputa pelo Urso
de Ouro, a Berlinale imergiu em uma experiência cinematográfica radical com uma
maratona de oito horas de viagem pelas Filipinas com A Lullaby to
the Sorrowful Mystery, de Lav Diaz. Filmado em preto e
branco, com uma plasticidade de beleza exótica, justificada por sua abordagem
filosófica sobre a identidade de uma nação, o longa abusa de planos longos (de
câmera parada) e de uma atuação no limite do teatral para recriar os conflitos
coloniais da emancipação filipina do jugo espanhol numa busca pelo corpo do
herói de sua libertação. Houve muito entra e sai da projeção, mas a força
imagética da produção se impôs, fazendo dele um forte candidato ao prêmio
Alfred Bauer, dado a produções que apontem novas linguagens. Os vencedores
serão conhecidos no sábado.
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