Como Bowie
transformou sua própria morte em uma obra-prima da ficção científica
Escrito por Brian Merchant
14 January 2016 // 06:12 PM CET
Para David Bowie, morrer não é o
bastante. Ele transformou sua própria morte em um espetáculo que nos obriga a
refletir sobre o derradeiro fim.
Bowie morreu há quatro dias,
tempo suficiente para que as lembranças e homenagens sumissem de nossos feeds.
Talvez seja a hora de voltar para nossa triste realidade que envolve Donald
Trump, o ISIS, polícias repressoras e milícias. Talvez.
Mas não consegui evitar mais uma
vez pensando no cantor. Talvez porque sua própria existência seja um antídoto
para a monotonia incômoda do cotidiano. Ou talvez porque sua morte tenha sido,
no fim das contas, uma de suas melhores performances.
Bowie vivia, respirava — e morreu
mergulhado na — ficção científica. Para ser mais específico, o que ele fazia
era ficção especulativa. O artista se inspirava em fantasia, ficção científica
e todo tipo de informação alienígena para criar suas personas. No entanto,
todas essas fantasias tinham como objetivo transformar o mundo em um lugar que
aceitasse quem — e como — ele queria ser. Não consigo pensar em nenhuma outra
pessoa capaz de alterar o mundo dessa forma, capaz de manipular o poder da
performance a seu bel-prazer e suscitar evoluções sociais e culturais por onde
passa.
Do seu primeiro hit, "Space
Oddity", passando pelo revolucionário álbum no qual ele apresentou Ziggy
Stardust ao mundo, e terminando com seu ato final como Lázaro em Blackstar,
seu álbum de despedida, Bowie não interpretou sua visão pessoal de ficção
científica. Ele estava vivendo-a. Até o último segundo.
Três dias antes de sua morte,
Bowie lançou o clipe de "Lazarus", parte do épico de ficção científica “Blackstar”
no qual ele percorre um mundo de astronautas mortos, espantalhos mutantes e
velas eternas. O clipe mostra um homem, interpretado por Bowie, levitando em
seu leito de morte.
Ao assistir “Blackstar", é
impossível considerar o crânio de astronauta cravejado de diamantes — o
derradeiro fim do Major Tom, talvez — como pertencendo a outro que não o
próprio Bowie.
Bowie sabia que, enquanto milhões
de pessoas o veriam flutuando em uma cama de hospital, ele provavelmente
estaria deitado em uma. Mesmo durante sua própria morte, ele usou a linguagem
da ficção científica para nos instigar a pensar sobre nossa própria
mortalidade. Muito apropriado para um homem que usou esse mesmo método para nos
inquietar durante toda sua carreira, seja falando sobre convenções de gênero ou
sobre a internet. Um homem que transformou a música pop em um instrumento por
meio do qual fosse possível pensar e dançar ao som do futuro.
Muitos fãs reagiram à sua morte
com elogios à sua androginia e às suas performances corajosamente eróticas, que
teriam aberto as portas para o atual movimento genderqueer. “Bowie usava
sua perfomance de gênero pouco convencional para questionar a visão do homem
cisgênero e másculo tida pelo grande público", escreveu Christina Cauterucci, colunista do Slater.
“A erótica estrela do rock, que mexia com a libido de homens e mulheres, fossem
eles gays ou héteros, criou um espaço onde seus fãs poderiam explorar a
multiplicidade da presença, da vitalidade e do desejo."
Quando Bowie apareceu vestido
como Ziggy Stardust em Top of the Pops, um programa assistido por 14
milhões de pessoas numa época em que o mundo parecia muito menor, o impacto foi
meteórico. Bowie ajudou a fundar um mundo onde adotar uma identidade de gênero
não-tradicional não era apenas aceitável, e sim desejado. A importância da
ficção científica em sua obra se perde em muitos desses comentários, mas não
podemos esquecer que ela é um ponto crucial — afinal, foi ela que guiou toda
sua arte rumo ao futuro.
A ficção científica estava
começando a invadir o cinema quando Space Oddity e Ziggy Stardust
nasceram, no final dos anos 60 e no começo dos anos 70, respectivamente. No
entanto, o mundo nunca tinha visto um deus do rock alienígena, muito menos um
que dançasse ao som de óperas pop. (É bom lembrar que toda essa mitologia não
foi criada apenas para justificar o uso de maquiagem no palco ou performances
chocantes — tudo isso fazia parte de uma série de narrativas intrincadas envolvendo
um apocalipse vindouro, uma raça alienígena chamada de "infinitos" e
algo misterioso chamado trampolim de buraco negro). Sua mídia de escolha, a
música, permitiu que Bowie explorasse assuntos tabu como a bissexualidade do
jeito que só ele sabia— não é de se espantar que os excluídos da sociedade
tenham se apaixonado pelo alienígena do rock.
Além disso, ele transformou a ficção científica em algo legal, popular e
perigoso, algo nunca feito antes.
Bowie nunca desistiu. Ao longo
dos anos, ele adotou outros alter-egos alienígenas, entre eles Aladdin Sane e
Thin White Duke. Em 1976, ele se tornou O Homem Que Caiu na Terra —
literalmente um alien entre humanos. Mesmo depois de seus anos de glória, ele
continuou a ousa e se envolveu em projetos como a criação de video games distópicos, o
desenvolvimento de seu próprio navegador, a BowieNet,
e a criação de programas que usavam tecnologias dos primórdios da internet. Enquanto
Bowie criava o futuro, a cultura pop tentava alcançá-lo.
Assim, sua morte — e a obra de
arte extremamente elaborada associada à ela— deixou todos em choque. Uma frase
comum nos últimos dias foi: "achei que Bowie viveria para sempre".
Roqueiros inabaláveis ficaram sem
palavras. Há alguns dias, Steve Jones, ex-guitarrista do Sex Pistols, e Dave
Ghrohl, do Foo Fighters, participaram da última edição de Jonesy's Jukebox, um
programa de rádio. Durante aquela hora, o que ouvi foi ao mesmo tempo
fascinante e desconcertante. Ambos passaram longos minutos totalmente mudos,
ocasionalmente repetindo histórias sobre seus encontros com Bowie e discutindo
teorias sobre a vida após a morte. (“Acredito numa energia que liga todos
nós", disse Grohl, propondo que todos nascemos do Big Bang e que nos
uniremos mais uma vez após a morte. "Eu não quero morrer", respondeu
Jones).
Bowie também não queria. Blackstar
(estrela negra, em português), é um termo utilizado para denominar um tipo de
lesão cancerígena. Isso deixa claro que Bowie transformou o agente de sua própria
morte em um último épico da ficção científica. É claro que ele usaria sua rica
linguagem para nos trazer uma última visão da morte, ambiciosa e
auto-referencial.
Esse "último álbum foi uma
despedida cuidadosamente planejada", confirmou seu produtor. Suas músicas
(e a peça off-Broadway que acompanha o
álbum) falam sobre a morte e foram escritas para um público que
buscaria consolo em suas obras após sua morte. A primeira frase de "Lazarus" é “Look up here, I'm in heaven.”
("Olhe para cá, eu estou no céu").
Assim, em vez de pensar num homem
moribundo, nós escutamos suas palavras, vemos ele levitar, assistimos à sua
última grande visão. Nesse momento, nós nos juntamos a ele.
É possível interpretar os corpos
jovens e estranhos do clipe de "BlackStar" como a nova geração de
excluídos, curvando-se sob o peso de sua própria alienação e encontrando
esperança em um livro chamado BlackStar. Esse livro contêm o futuro, e a
última profecia de Bowie diz que alguns de nós (ou todos) darão um passo à
frente e lerão suas últimas palavras:
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely
cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
Tradução:
Ananda Pieratti
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