Ney
Matogrosso: “O Brasil está mais careta hoje do que era”
Músico
que prepara novos projetos, critica radicalismo no país e é a favor do
impeachment.
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Ney Matogrosso durante a entrevista. / Mauro
Pimentel
Ney Matogrosso (Bela Vista, 1941) senta no canto do sofá, forrado
com a bandeira de Pernambuco, com as pernas recolhidas e meio corpo fora,
parecendo que a qualquer momento vai cair no chão. É o jeito de alguém pronto
para sair da cena rapidamente. Fica mais de uma hora se equilibrando, mas não
oferece sinais de querer sair correndo. Ney recebe a reportagem ainda com a luz
entrando pelas janelas da sua enorme cobertura no Leblon, no Rio de Janeiro, mas pouco
depois o sol se põe e a casa fica quase na escuridão. Ele só acenderá uma luz à
petição do fotógrafo minutos antes do encontro acabar.
Nada se escuta na sala a exceção dos gritinhos de uma fêmea de macaco prego que pula de um lado pra outro de uma gaiola
gigante. O animal está nervoso, não gosta de mulher perto. Ela gosta do Ney, e
de algum ou outro conhecido, e o resto deve ficar longe. Garota, amada e mimada
pelo intérprete, representa, paradoxalmente, o que Ney Matogrosso se esforça por combater o tempo todo: os ciúmes. Ele chegou
a cantar que os ciúmes são o “perfume do amor”, mas a letra apenas romantizava
um dos seus principais defeitos. “As pessoas acham que tudo o que eu canto é o
que eu penso. Mas eu não considero isso jamais. Acho o ciúme um inferno, uma
coisa horrorosa. Me esforço por superar esse obstáculo na minha vida o tempo
todo”, diz o artista.
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Em plena forma aos 74 anos, Ney ainda é tocado e
lisonjeado pelas senhoras de cabelos brancos com penteados de salão quando o
veem passeando pelas ruas do bairro. “Uma vez, uma encasquetou que queria
fotografar meu pau durante um show em que eu tirava tudo. Eu lhe dizia que ela
não tinha entendido o conceito, que aquilo não era um strip-tease, mas eu via
ela com a câmara em todos os cantos do teatro tentando me pegar”, lembra Ney,
entre risadas. O segredo do seu sucesso, até com as mulheres mais caretas que
perdem os estribos ao vê-lo subido no palco, nem ele sabe explicar.
Pergunta. Você lançou discos com canções só de Cartola,
outro só do Chico Buarque, outro só
do Tom Jobim, Ângela Maria, Carmen Miranda... Por que essas
escolhas?
Resposta. De Carmen Miranda comecei fazendo um repertório
dela, mas não fiquei restrito porque comecei a pesquisar e vi que tinha tanta
coisa boa que não precisava ficar só nela. Mas tudo o que era de melhor passava
por ela. Era a grande estrela do momento na música brasileira. Olha, eu sou
intérprete, eu não sou compositor, então me dou o luxo de desfrutar de tudo o
que a música brasileira oferece. Eu
não acredito em ficar restrito a um único estilo.
P. Já tentou compor?
R. Já, mas não é a minha. Compus duas letras, mas que
eu sou muito crítico delas. Uma que fala de um encontro de noite, que no final
você não sabe se encontrou uma pessoa de verdade ou um extraterrestre. E a
outra, dos anos 80, se chama Dívida de amor, uma música romântica, mas
que fala da morte. Eu gravei as duas, mas nunca cantei.
P. O que tem ficado na gaveta que você ainda gostaria
de levar para frente? O projeto de cantar as músicas de Caetano Veloso?
R. Caetano está sempre na minha mira, mas ainda não
atirei. Ainda. Mas têm muitas coisas que me interessam. Eu vou fazer agora um show
para o que fui convidado por uma diretora de cinema, Ana Carolina [Soares]. Eu vou cantar Carlos Gomes e Villa-Lobos, e um ator vai recitar
poemas do Gonçalves Dias, um poeta baiano de 1800 que começa em uma fase
romântica e depois ele vai ficando deslumbrado pelo Brasil, pela
natureza e pelos índios e acaba sendo uma apoteose ao Brasil... A proposta é
levá-lo a seis capitais, gravá-lo, e depois eu tocar minha vida, porque tenho
um repertório pop pronto e falta muita pouca coisa para acabar.
P. Você não tem planos de parar? Não se sente cansado?
No começo eu
olhava as fotografias e eu não me reconhecia, eu não achava que era eu. Era
muito louco.
R. Eu vou parar quando for impedido. Não me sinto
mais cansado do que sempre fiquei. O último show que estou fazendo é bem
puxado, e quando vi como ficou e fui fazer pensei: “Nossa o que é que fui
inventar?”. Mas agora que inventei, eu aguento. Eu tenho muito prazer em fazer,
ainda gosto mais de fazer show do que gravar. O único que eu acho chato são as
viagens, que eu perco muito tempo.
P. Qual é rumo da música brasileira? Quem você admira
neste momento?
R. Criolo é um deles, e também o Tono, um grupo daqui do Rio de Janeiro. Tem pessoas
fazendo coisas interessantes. Eu ouço dizer que há uma crise na música, mas não
é uma crise na criação, é uma crise pelos obstáculos que você enfrenta para
chegar e tocar no rádio. Hoje em dia você tem que pagar pra tocar, antigamente
você gravava um disco e você ia para todas as estações de rádio do país.
P. Haverá uma nova geração de Chicos, Caetanos,
Marias Bethânia, Neys... Alguém que represente este momento no Brasil?
R. Não sei. Se a gente concluir que viver é um
trânsito, as coisas estão se transformando com muita velocidade, então eu não
sei onde vai dar. Tudo pode acontecer. No Brasil não para de aparecer artista
diariamente, só que muitos vêm e vão, mas é um celeiro artístico, que eu acho
maravilhoso. Talvez é o que pode salvar o Brasil, porque quando essa
mentalidade artística se expandir será de todos.
P. Há um abismo brutal entre o Ney Matogrosso,
exibicionista e ousado do palco e o Ney Matogrosso, tímido e reservado, do dia
a dia. Como se relacionam um Ney com o outro?
R. Durante um período grande eu pensei que fosse esquizofrênico, que eu tivesse dupla
personalidade. Até que eu observei que, com o tempo, aquilo foi se aproximando
um do outro, porque no começo eu olhava as fotografias e eu não me reconhecia,
eu não achava que era eu. Era muito louco. Ai fui entendendo que sou eu mesmo,
que não tenho esquizofrenia nenhuma, e que no meu trabalho é assim, é tudo
extrovertido, e que eu fora do palco não tenho nenhuma necessidade daquela
manifestação. Absolutamente nenhuma.
P. E como se explica isso? Por que na hora de fechar
a porta essa necessidade de expressão, de reivindicação perde fôlego?
R. Eu não explico, eu aceito. Mas não é que eu deixe
de ser reivindicativo. Eu sou uma pessoa que exige direitos, reivindico o tempo
todo, mas não tenho necessidade daquela exposição. Eu sou uma pessoa consciente
do mundo que eu vivo, da realidade da vida, da realidade dos governos, das
igrejas... Sei tudo isso, sou ligado, não sou bobinho. Minha única via para
poder expressar tudo o que eu penso do meu país e do mundo é nas entrevistas
que eu concedo, e no palco desafio todas as regras. E eu sou ousado, sim, sou
atrevido, sim, porque eu preciso ser, porque o Brasil está mais careta do que
era.
P. Como você, que enfrentou uma ditadura, pensa
assim?
R. Porque é assim. O Rio de Janeiro, nos anos 60, era
uma cidade onde de quinta à sábado você podia andar na rua até cinco da manhã
que fervia de gente. Quando aparecia uma bicha muito louca na rua, o povo
aplaudia. Eu achava aquilo tão engraçado que eu ficava admirado. Eu vinha do
Mato Grosso, onde só tinha um [gay] que passava na rua e só faltava o povo
jogar pedra. Isso era de uma maneira geral, o Brasil era mais tolerante com
todas as diferenças e foi ficando intolerante. Quem instituiu a violência no Brasil
foi a ditadura militar e o povo passou a ser violento. Existe uma violência
agora embutida em todo o mundo, você hoje em dia não pode dar uma opinião. Nas redes sociais as pessoas caem furiosas. Eu não
tenho rede social porque não
me interessa o que as pessoas estão pensando, porque as pessoas estão loucas,
estão radicais. Como a gente vai ser um país com pensamento radical? Mas você
vê isso em tudo. Na política estamos chegando à beira de uma guerra civil por
causa dessa gente ridícula.
P. De que gente ridícula?
R. Do Governo ridículo que nos governa. Toda essa
gente tem que ir para a cadeia. Você não pode deixar no poder um Governo que
saqueia o país. Esse juiz Sergio Moro está dignificando a Justiça no nosso país. Porque
quem rouba é ladrão e ladrão tem que ir para a cadeia, não é só pobre que tem
que ser preso. Eu não estou dizendo que nunca roubaram, mas eles chegaram com tanta sede ao pote que foram descarados. Vamos
parar, não podem roubar mais. Eu sempre falei o que eu acho, se eu não me
privei de dar minha opinião nem na ditadura porque eu vou me privar agora?
Agora que me engulam, não dizem que é uma democracia? Vamos ver se é mesmo.
R. Sou. Se se demonstrar sua culpabilidade, ela deve
sair.
P. O que levou ao jovem Ney a servir na aeronáutica?
R. Era o único pretexto que eu tinha para sair de
casa em aquele momento. Era 1959 e nem filho homem saia de casa, só saia casado
e eu tinha 17 anos. Não queria mais viver nessa casa, não queria mais viver
mais com aquele pai.
Eu descobri
muitos anos depois que eu tinha criado um manto de chumbo no meu coração, para
eu não necessitar de ninguém e de nada.
P. A relação com seu pai melhorou com os anos? Ele
chegou a te ver subido num palco?
R. Depois de muitos anos ficamos amigos. Ele me viu
várias vezes, só não viu Secos e Molhados. A primeira vez que ele me viu foi no
meu primeiro disco solo. Minha irmã me disse que ele tomou remédio para o
coração porque ele não sabia o que ele ia ver. Ele assistiu o show e no final
falou para minha irmã que ele estava totalmente enganado, que eu era um grande
artista. Mas para mim ele não disse.
P. Você chorou ao ouvir isso?
R. Não. Não sou desse jeito. Eu sou muito pé no chão,
não é que eu não seja emocional, mas não sou uma pessoa que chora fácil. Eu
tive que criar muita defesa para conviver no mundo, eu saí criança de casa. E
quando eu saí, eu fui conviver num quartel só com homens, tendo que delimitar o
meu território o tempo tudo porque se não seria invadido. Eu descobri muitos
anos depois que eu tinha criado um manto de chumbo no meu coração, para eu não
necessitar de ninguém e de nada.
P. Isso não dificultou seus relacionamentos com as
pessoas?
R. Sim, até que tomei daime (ayahuasca) durante um
ano e meio. Ai eu descobri que eu tinha feito isso comigo mesmo conscientemente
e não me lembrava. Eu cheguei a ver o momento em que tomei essa decisão e foi
assim: “Eu não preciso de amor de pai. Eu não preciso de amor de mãe. Eu não
preciso do amor de ninguém. Eu não preciso do mundo. Eu quero que o mundo se
foda. Eu vou tocar minha vida”. Um dia, depois de 12 horas tomando daime,
deitei na minha cama e percebi, veio aquela memória e meu peito escancarou e vi
raios verdes jorrarem dele. Parecia que tinha tomado um ácido. Aí eu fui
mudando, as pessoas me perguntavam o que estava acontecendo comigo.
P. E você ficou um doce?
R. Eu sempre fui doce, mas eu não me permitia ser. As pessoas
se aproximavam de mim, mas eu cortava. Se eu namorasse alguém uma noite, se
quisesse me ver no dia seguinte eu já cortava, não tinha espaço para isso.
Tinha espaço para sexo, sem compromisso,
eu fugia de qualquer envolvimento, até que teve uma vez que eu não consegui
fugir...
P. E o que aconteceu?
R. (Risos) Admiti a possibilidade. Eu entendi que era
possível ter uma relação com alguém duradoura.
P. Estamos falando do mesmo alguém (o Cazuza)?
Eu ouço
dizer que há uma crise na música, mas não é uma crise na criação, é uma crise
pelos obstáculos que você enfrenta para chegar e tocar no rádio.
R. Sim.
P. E esse foi seu grande e único amor?
R. Não, não foi o único. O primeiro, esse que me
desestabilizou foi um grande amor, mas eu tive três grandes amores. Com ele, eu tive
a sensação de que eu gostaria de viver, ele me abriu, e depois eu tive um
relacionamento de 13 anos. De lá para cá sou uma pessoa normal, não sou ansioso
por relacionamentos, não sou fechado, mas não procuro. Algumas vezes acontece. Eu preciso da solidão e não consigo
viver sem meus momentos sozinho.
P. A sociedade brasileira evoluiu no debate cidadão
de questões importantes como os direitos dos homossexuais, legalização das drogas, aborto... Embora
as leis continuam sendo rígidas nesse sentido. No caso da Aids, no
entanto, o assunto continua sendo tabu em todas as esferas, e é sinônimo de
desinformação e preconceito. Qual é sua relação com o tema? Por que parece que
esse não é também um problema da sociedade?
R. A Aids está atingindo a população de 15 a 20 anos.
Eles não entendem porque eles não viveram. Eu tive uma semana em que fui três
vezes a enterrar amigos. Eles acham que não mata, que tomam remédio e pronto,
meu deus! É tão simples usar uma camisinha, não sei qual é o problema. Mas é
verdade que não se fala mais, nem as autoridades.
P. Você alguma vez se preocupou por ter contraído a
doença?
R. Esse com quem eu morei 13 anos, morreu da doença e
quando eu fui fazer o teste, para minha enorme surpresa, eu não estava
contaminado. Eu perguntei para vários médicos como é que eles explicavam que
após ter contato com o vírus eu não era portador. Me disseram que não tinha
explicação. Agora, eu não dou mole, achando que eu sou imune. Antes era vida
louca para todo o mundo, camisinha era só para quem não queria ter filho.
P. O que você opina da onda conservadora e esse
ressurgimento religioso que domina parte dos debates no pais?
R. O Brasil é um país laico, mas aqui deixaram essa
infiltração acontecer. Eu acho que o que vai acontecer é cobra comendo cobra.
Mas o povo tem que se mexer. Não existe esquerda e direita mais. Aqui
ultrapassamos a ideologia política, aqui se trata de malfeitores e o povo tem
direito de colocar eles para correr.
P. No filme Ralé, que Helena Ignez acaba de
estrear com você como protagonista, vocês tocam vários assuntos da sexualidade
e da vida. Me diga o primeiro que vem na sua cabeça sobre eles. Liberdade sexual?
R. Todas as liberdades.
Não existe
esquerda e direita mais. Aqui ultrapassamos a ideologia politica, aqui se trata
de malfeitores e o povo tem direito de colocar eles para correr.
P. Enfrentar a velhice?
R. Eu não enfrento a velhice, eu a aceito. Convivo
com a possibilidade da morte bem tranquilamente. Eu não tenho medo de nada.
P. O amor livre como forma de relacionamento.
R. Eu já experimentei nos anos 70. É interessante mas
tem uma hora, pode ser que agora as pessoas estejam mais acostumadas com o
contexto, que alguém tinha ciúme e acabava. Era interessante como exercício.
Não era fácil, porque todos nós tínhamos ciúme. Eu fui o que aceitei o terceiro
e para minha enorme surpresa eu aceitei com tranquilidade, porque eu pensava
que nunca seria capaz. Mas eu aceitei e gostei, mas aí o outro não gostou que
eu gostasse, né?
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