entrevista
MÚSICA
Na
trilha de Péricles Cavalcanti
Por Carlos Adriano
Por Carlos Adriano
"Artistas abrigados na sigla MPB são hoje os mais
desinteressantes", diz o músico, que lança "Blues + 55"”
“Se essa sigla MPB quer abranger toda a
produção de música popular no Brasil, então ela não diz nada, devido à
quantidade e diversidade do que se produz aqui. Vejo que os artistas e
trabalhos abrigados sob essa sigla são os mais desinteressantes, fazendo um
tipo de música sem imaginação musical e poética, sem compromisso profundo nem
com a tradição nem com a contemporaneidade.“
Quem assim o diz, no entanto, é um artista
que trabalha justamente na faixa (ou nas bordas da faixa) dessa chamada música
popular brasileira: o compositor, instrumentista e cantor Péricles Cavalcanti.
Ele está lançando um novo disco que, na verdade, são dois: “Blues” e “55”. Se
em “Blues” imperam uma clave melódica de canções e um entorno acústico, em “55”
o tom é dado pelo tratamento eletrônico e um viés experimental.
O compositor, que nasceu no Rio de
Janeiro em 1947 e mudou-se para São Paulo em 1950, tem canções gravadas por
Adriana Calcanhoto (“Dançando”, “Intimidade (sou seu)”, “Aconteceu”), Gal Costa
(“O céu e o som”, “Clariô”, “Negro Amor”, esta uma versão de Péricles e Caetano
para “It’s all over now, baby blues”, de Bob Dylan) e Caetano Veloso (“Blues”,
“Musical”, “Elegia”, esta sobre um poema de John Donne traduzido por Augusto de
Campos).
Sua discografia compreende “Canções”
(1991), “Sobre as ondas” (1995) e “Baião metafísico” (2000). Péricles já compôs
trilhas sonoras para teatro -“Ham-let” e ”Sertões, o homem II”, de José Celso
Martinez Corrêa; “A farra da terra”, do Asdrubal trouxe o trombone (da peça
estão em “Blues”: “A Luna e a Lena” e “Heavy metal”)- e cinema -“Mil e uma” de
Susana de Moraes (trilha lançada em CD, 1996).
Sua estréia profissional como músico foi
justamente num filme: violonista e vocalista de apoio na trilha que Gilberto
Gil escreveu para “Copacabana mon amour” (1970), produção Belair de Rogério
Sganzerla. Péricles compôs ainda trilhas para documentários televisivos: “Duas
águas” (sobre João Cabral de Melo Neto), dirigido por Cristina Fonseca, e “Quem
é Bardi?”, dirigido por José Roberto Aguilar.
Se em discos anteriores podemos ouvir
alusão literária (“Charles e Alice”), cancioneiro popular (“Chama eterna”, “A
noite em que Vicente Celestino morreu”), veia pop (“Absoluta”, “Eu queria ser
Cássia Eller”) e metalinguagem crítica (“Minha vanguarda”, “Odeio música”,
“Música, por quê?”), nestes dois novos discos podemos ouvir alusão musical
(“Bossa nova”, “Rebolero”), instrumental não-tão-popular (“Um abraço no
Thelonious”, “Ivesswing”), veio tecnotribal (“Blues”, É pra sambar”) e crítica
metalinguística (“Medo de amar nº 3”).
Estudante da USP nos anos 60, Péricles
chegou a dar aulas de filosofia em cursinho pré-universitário -um de seus
alunos foi Bernardo Vorobow, curador e produtor de cinema. Em seu livro
“Verdade tropical”, Caetano escreveu que o amigo músico, na virada para os anos
70, “acolheu o temário da contracultura, abandonando um futuro acadêmico que se
apresentava como brilhante”. O filósofo virou hippie e foi curtir “baratos” em
Paris, Londres e Bahia.
Na entrevista a seguir, a conversa faz
compasso ao passado para um diálogo com o então professor. Mas o artista fala
também do que o toca atualmente: o assédio digital à indústria fonográfica (“a
‘crise’ não é só devido à pirataria, mas também e, principalmente, à
proliferação dos meios e das facilidades para a produção e a distribuição de
discos”), a (con)fusão de gêneros (a batida eletrônica das pistas e o “coco” de
Jackson do Pandeiro na clave do “samba duro”) e os aspectos gerais de sua
criação e específicos de canções dos novos discos.
Péricles Cavalcanti comenta ainda a
crítica de música na imprensa (“temos de tudo: boas intenções, oportunismo,
pessoas que se dedicam honesta e dedicadamente, pura competição, muito
analfabetismo e até alguma ‘crítica’“) e declara suas preferências na música
popular brasileira, que, arredia ou conformista, parece tentar escapar ou se
acomodar à tal sigla.
Por que lançar dois discos diferentes (“Blues” e “55”) ao mesmo tempo e em um só CD?
Péricles Cavalcanti: Depois de
“Blues”, que foi gravado em três dias no estúdio Bebop, a partir de um show que
eu vinha fazendo com o Lincoln Antônio e o Claudio Faria (disco que em
princípio tinha mais de 20 faixas), e antes que tivesse acertado como e quando
lançá-lo, eu comecei a montar o meu próprio estúdio e a fazer outras gravações
numa direção bem diferente daquelas.
Então eu pensei que, se vivemos numa
época de “crise” da indústria fonográfica, porque não tomar a palavra crise no
seu sentido positivo, como momento de mudanças que podem ser enriquecedoras, e
experimentar um novo formato e lançar dois discos ou produções diferentes e
inéditas, num mesmo CD. Pensando assim, eu encurtei o tempo dos dois, para que
tivessem uma duração que coubesse num só disco, sem ficar longo demais, e
chamei-o de “Blues 55”.
Queria que você comentasse mais essa questão da “crise” na indústria fonográfica. Qual o diagnóstico? Que respostas os músicos poderiam dar à situação?
Péricles: Acho que a
chamada crise na indústria fonográfica não é só devido à pirataria, mas também
e, principalmente, à proliferação dos meios e das facilidades (por causa dos
preços relativamente baixos) para gravações e, enfim, para a produção de
discos. O mundo digital, com seus equipamentos pequenos, leves e adaptáveis a
computadores domésticos e altamente eficientes, democratizou a produção e até a
distribuição de material gravado, de qualidade ou não.
Uma pessoa aqui em São Paulo pode
trabalhar em conjunto, trocando informação digital com outra que more em Berlim
através de correio eletrônico, como eu fiz no “55”. E essas trocas são feitas
numa quantidade e velocidade enormes e isso acaba gerando alguma qualidade,
criando novas originalidades.
É por aí que os músicos podem também dar
suas respostas e indicar novas saídas até para a crise econômica no mundo do
disco. Em 1992 eu compus uma canção chamada “Mapa-múndi”, que está no álbum
“Sobre as ondas” (1995), que diz: “eu tô aqui, eu tô na África / tô em São
Paulo, tô em Pequim / o mundo é uma grande praça / feita p'ra mim”.
Como você pensa o trabalho de diálogo e intervenção no “passado” da música, muito presente em seus novos CDS, seja nos gêneros re-ouvidos ou re-imaginados, seja na alusão a compositores e cantores?
Péricles: Desde o meu
primeiro álbum, “Canções” (1991), que eu trabalho tendo gêneros e até outros
artistas como tema das minhas composições, utilizando assim elementos
metalingüísticos -as faixas “Sem drama”, “Dos prazeres, das canções” ou “Farol
da Jamaica”, são bons exemplos disso.
Acredito que tanto o “formato” canção
moderna quanto os principais gêneros de música popular de massa mundial, como o
blues e o samba, tenham se consolidado na primeira metade do século XX. Isso
torna a época posterior a isso naturalmente propícia a trabalhos com aspectos
metalingüísticos. É só pensar na Bossa Nova e especificamente no que faz João
Gilberto com o samba, ou no que os Beatles fizeram com o rhythm 'n' blues.
No “Blues 55”, eu continuo trabalhando
da mesma forma. A primeira faixa retoma a inspiração da canção de Cole Porter,
mantendo seus parâmetros estéticos, para parodiá-la, comentá-la e adaptá-la
introduzindo outros elementos, brasileiros, do mesmo nível, como as canções de
Ari Barroso e os filmes de Rogério Sganzerla.
Os discos também dialogam com um repertório que corre além ou à margem da música popular, não?
Péricles: Há referências
mais explícitas ao jazz , como no citado “Rebolero” e na composição-homenagem a
Thelonious Monk, “Um abraço no Thelonious”, que se refere indiretamente ao João
Gilberto, já que me inspirei no seu "Um abraço no Bonfá” para fazê-la.
Além disso, há no “55” uma aproximação
maior com a música experimental erudita, sempre trazendo-a para o campo de
referências da música popular, através dos dois exercícios feitos a partir de
um texto de Charles Ives, “Ivesswing (vinil)” e “Ivesswing plus (cd)”.
Nestas, eu inverti o meu processo de
composição habitual, partindo de duas construções formais abstratas, tendo como
base (em cada uma delas) duas seqüências harmônicas paralelas: uma em dó maior
e outra em fá maior, para, em seguida, ir acrescentando sons percussivos e, por
último, linhas melódicas. “Ivesswing plus (cd)” é uma das minhas faixas
preferidas do disco e acho que ela resultou numa das minhas melhores composições.
Deve-se considerar também, nessa
aproximação, a importância da participação, no “55”, do Sandòr Kavallis que,
embora acostumado a trabalhar com música pop, tem formação erudita. Gosto muito
da direção e das dicas que ele deu no arranjo de “Laurin Hill-Brigitte Bardot”.
A tradição da nossa música ainda é algo por ser valorizado? Há movimentos nesse sentido na música que hoje toca no rádio ou na que não toca?
Péricles: Quando uma
tradição é forte, como a nossa, ou a cubana, ou a norte-americana, naturalmente,
cada nova geração volta, de alguma maneira, a se alimentar nela.
Se a música que a gente faz hoje é boa,
é porque, no passado, ela já era boa ou melhor até. Meus filhos que têm entre
20 e 25 anos, desde que se tornaram adolescentes passaram a se interessar
fortemente pelos antigos.
Zeca Pagodinho é o melhor exemplo disso.
Desde o começo de sua carreira, no final dos anos 80, ele mescla em seus discos
novos sambas com outros compostos nos anos 30 e 40. Este grande artista sabe
que esta “água para a sua sede” vem de um rio que nasce lá atrás.
Você também “usa” a música como uma versão de crítica. Como foi a história de “Medo de amar nº 3”, que é um “desagravo”, mas também dialoga com outras duas canções brasileiras?
Péricles: Adriana
Calcanhotto me pediu para fazer uma versão de “(has) anybody seen my baby” dos
Rolling Stones para que ela gravasse no seu disco “Público”, mas os autores e a
editora da música não autorizaram a gravação, mesmo com a gravadora dela se
empenhando para isso.
Adriana ficou furiosa com isso e me
pediu que fizesse uma outra canção que servisse de desabafo para ela e para
mim. Foi assim que nasceu “Medo de amar nº 3” que, na verdade, é uma canção de
amor narrada por uma primeira pessoa que, de acusada na primeira parte, passa a
acusadora amorosa na segunda; porque afinal eu e ela amamos os Rolling Stones.
O nome é uma homenagem à canção de
Vinícius de Moraes “Medo de amar” e tem o numeral 3 agregado porque já havia
uma outra homenagem anterior chamada “Medo de amar nº 2”, de autoria de Suely
Costa e Tite de Lemos
No disco “Blues” há um chorinho chamado “Um abraço no Thelonious”, que você considera “o maior compositor que o jazz já produziu”. Essa faixa composta em 1974 dialoga com “Um abraço no Bonfá” de João Gilberto, como você disse. Queria que você falasse da importância da bossa nova, que fundiu samba e jazz, para as novas gerações do país e do mundo, como influência e fonte de novas abordagens musicais.
Péricles: A raiz do jazz
é o blues, e Thelonious Monk é um dos pontos mais altos da sofisticação de
ambos os “gêneros”. O choro é um gênero musical riquíssimo que tem em comum com
o jazz o fato de ser música feita por instrumentistas, em geral virtuoses, e de
ter o improviso como elemento fundamental.
A raiz da bossa nova é o samba, e João
Gilberto, como cantor e instrumentista, é o ponto mais alto da sofisticação de
ambos os “gêneros”. Não é por acaso que a bossa nova através, principalmente,
das canções de Tom Jobim e do canto, do violão e dos improvisos estruturais de
João, faz parte também da história do jazz. “Um abraço no Thelonious” é uma
espécie de síntese deste “silogismo” histórico-musical. Acho que isso explica
em parte porque ela está neste disco.
Por que demorou tanto para gravá-la?
Péricles: Nunca a gravei
porque ainda não tinha feito um álbum com essa temática geral e onde coubesse
um solo instrumental de violão. Em todos os meus discos o repertório acaba se
formando entre faixas que de alguma forma se relacionam, no tempo ou no
“espaço” do conceito geral.
E qual a relação com a canção “Bossa nova”?
Péricles: De um modo
parecido, “Bossa nova” foi composta em inglês, pensando no significado que as
letras e que o gênero “bossa nova” adquiriram no contexto do jazz e do pop
internacional. Depois, ela foi arranjada e incluída no disco, pensando na
influência genérica da música eletrônica de pista sobre a produção musical
brasileira contemporânea e, especificamente, em trabalhos de alguns artistas
como Bebel Gilberto, Fernanda Porto e Bossa Cuca Nova.
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A coda “É pra sambar” faz um “rhytm sampling” de
batidas e arranhões eletrônicos com toques de baião e coco. O que você acha de
uma tal morte anunciada do samba, ao passo que ouvimos a batucada de sua
retomada? O samba tem se transformado?
Péricles: “É pra sambar” surgiu de uma
programação de bateria eletrônica que o Sandòr me enviou, dizendo que para ele
aquilo soava como um samba mais “duro”, mais próximo de pulsos usados na música
de pista. Logo eu me lembrei que o “coco”, tal como aparece em algumas
gravações do Jackson do Pandeiro, era às vezes chamado também de “samba duro”,
o que me levou a pensar num refrão que pudesse se referir ao samba como um
gênero abrangente que pode incluir muito da música eletrônica para dançar. Daí
o uso de intervenções de “scratchs” sintetizados no arranjo que desenvolvi.
A
letra-refrão funciona como um provérbio tal como: “Quem está na chuva é pra se
molhar”. Por isso esta faixa-coda, que eu gosto de pensar como um “grand
finale” para os dois discos (“Blues” e “55”), é dedicada ao Max de Castro, que
é um dos principais representantes desta tendência atual de fundir o samba com
elementos de música eletrônica e hip hop. Ela poderia ser dedicada também ao
Marcelo D2 que fez um maravilhoso disco nesta direção e que, não por acaso, se
chama “À procura da batida perfeita”.
Você cultiva parcerias com poetas, como Haroldo de Campos (“Ode primitiva”, “Baladeta à moda toscana”), Arnaldo Antunes (“Imagem”, “Entre”, “Quase tudo”), Décio Pignatari (“Poesseu, poessua“). Muda o diapasão da música quando você encontra uma “letra” num poema em relação a uma letra composta como tal?
Péricles: Eu, raramente, tenho vontade de musicar
uma letra; nem minha, porque, em geral, não faço, nem escrita por outra pessoa.
Uma canção surge, na maioria das vezes, para mim, com letra a música se
desenvolvendo juntas ou, em menos casos, a partir de uma melodia ou, noutras
vezes, de uma progressão harmônica e até de uma idéia abstrata. Me identifico
mais com os compositores que sabem fazer tudo, letra e música, bem. O Noel Rosa
que eu gosto mais é o compositor dos maravilhosos sambas “Com que roupa”,
“Palpite infeliz”, “Três apitos”, “Coisas nossas” (entre muitos outros), que
ele fez sozinho. Acho que as minhas melhores composições são aquelas que em que
faço letra e música. Portanto, é preciso que o texto traga já uma sugestão de
musicalidade própria original e, nesse sentido, não há nenhuma diferença entre
um poema que vire canção e uma letra escrita com este fim. Se bem que, ao mesmo
tempo, eu acho que qualquer texto possa ser musicado, dependendo da dimensão do
“olho” musical de quem vá fazê-lo. A principal referência da palavra escrita é
a palavra falada e, se pode ser falada, então... Qualquer dúvida, é só
perguntar pro Jorge Benjor.
Você já recorreu a textos da “alta cultura” para fazê-los letras de canções, como as traduções de Augusto de Campos para “Elegia” (poema de John Donne) e “Nuvoleta” (fragmento do “Finnegans wake”, de James Joyce). O que está em jogo nessa operação, enquanto escolha e processo de composição?
Péricles: O que me chamou a atenção nestes textos
da chamada “alta cultura” que musiquei foi a vocação que senti neles de se
tornarem boas “letras” para canções dentro da tradição popular, ou “baixa
cultura”, e ter, assim, a possibilidade de eliminar, pelo menos através delas,
a fronteira entre estas duas “culturas”. Isso se deve muito às traduções do
Augusto, que sempre gostou de música popular urbana, brasileira ou
internacional, de Lupicínio Rodrigues a Cole Porter.
Como você vê a relação da música brasileira com a crítica de música no Brasil?
Péricles: Essa é uma questão muito complexa para
ser respondida assim, em pouco tempo e de forma conclusiva. Acho que aqui, no
Brasil, a gente tem de tudo: boas intenções, oportunismo, pessoas que se
dedicam honesta e dedicadamente, pura competição, muito analfabetismo e até
alguma “critica” no sentido mais amplo da palavra, que pode significar
esclarecimento e contribuição para aumentar a rede de significados do disco ou
do trabalho abordado.
É
claro que estou me referindo à crítica publicada em jornais e revistas. Na área
da crítica musical em livros, acho que “Bim Bom”, de Walter Garcia, foi o
trabalho mais interessante que apareceu nos últimos anos.
De
qualquer modo eu sempre me interesso por ler o que se escreve sobre música,
mesmo que seja para rir de alguns “critérios” esdrúxulos que aqui e ali
aparecem. É bom saber o que os outros “pensam”, pois, afinal, o “terreno” onde
se move a música popular de massa, seja de maioria ou não, é movediço, de
formação heterogênea e múltipla (envolvendo talento, opinião pública, meios de
comunicação, oportunidades, temperamento e personalidade de artistas e
críticos, dinheiro, lugar que a língua e o país ocupam no mundo etc.), sendo
assim muito propício a todo tipo de “manifestação”.
O que você acha da chamada MPB atual?
Péricles: Não gosto dessa sigla MPB. Se ela quer
abranger toda a produção de música popular no Brasil, então não diz nada,
devido à quantidade e diversidade do que se produz aqui. Por outro lado, se MPB
designa um estilo, um gênero, um movimento específico ou uma corrente, qual é?
Ainda
por outro aspecto, eu vejo que os artistas e trabalhos que procuram se abrigar
ou são abrigados sob essa sigla são os mais desinteressantes, fazendo um tipo
de música “morna”, sem imaginação musical e poética, sem compromisso profundo
nem com a tradição nem com a contemporaneidade, nem apontando para um futuro.
Enfim, sem tesão. O disco de João Gilberto, “In Tokyo”, gravado quando ele já
tinha 72 anos, é o oposto disso.
O que há de bom e o que há de ruim?
Péricles: Gosto de muitas coisas que têm sido
feitas por novos artistas, ultimamente, além das já citadas anteriormente aqui
em nossa conversa. Vou citar algumas delas. Gosto de Vanessa da Matta. Acho que
ela canta bem, é linda no palco, e compõe com uma espécie de estranheza que
soa, ao mesmo tempo, primitiva e sofisticada.
Gosto de Los
Hermanos. Acho
o “Bloco do eu sozinho” lindíssimo, um disco de banda como não se ouvia desde
aqueles de Chico Science e Nação Zumbi, ou “Severino” dos Paralamas, ou “Tudo
ao mesmo tempo agora” dos Titãs.
Gosto
de muito do que se faz com rap e hip hop. Adoro os Racionais e a gravação que
eles fizeram de “Da ponte para cá” (no disco “Nada como um dia após o outro”).
Adoro funk carioca, o “batidão” e o fluminense “De leve”, com seu “estilo
foda-se” 1.
Gosto
de Pitty, acho que ela tem muito “pique”, com se dizia nos anos 70. Baiano sabe
fazer rock 'n' roll, basta lembrar Raul Seixas e o Camisa de Vênus. Gravei no
“Blues 55” uma música que eu adoro, chamada “O cantor de jazz”, do repertório
de um grupo de rock baiano, Dr. Cascadura.
Gosto
do disco “Cabeça Coração” de Arícia Mess, que o Lenine, do maravilhoso “O dia
em que faremos contato”, me apresentou. Acho a produção musical do disco de
Arícia, moderna e impecável.
Gosto
da produção musical do grupo composto por Moreno Veloso, Domênico Lancelotti,
Pedro Sá e Kassin (entre outros), Acho o disco de Moreno + dois, “Máquina de
escrever música”, lindo. Acho também que Kassin produziu um dos melhores discos
lançados recentemente: “Eu não peço desculpa”, de Caetano e Mautner. E acho que
Ivete Sangalo e Sandy são cantoras extraordinárias.
Queria aproveitar sua formação de filósofo e propor um jogo epistemológico -ou seria hermenêutico?. Vou citar escolas musicais e você relaciona a um filósofo ou corrente filosófica, comentando. Começo: samba carioca, de um Nelson Cavaquinho, um Cartola...
Péricles: Nelson Cavaquinho é para mim um dos
maiores compositores de canções do mundo. Ele tem um estilo tão próprio que,
não importa quem seja o seu parceiro, é sempre imediatamente identificável,
mesmo filosoficamente. Portanto, ele é o seu próprio filósofo.
Mas,
se eu fosse pensar em algum outro para fazer uma analogia mesmo que longínqua,
talvez pensasse em Kierkegaard, Schopenhauer ou Heidegger, ou qualquer outro
que tivesse pensado com profundidade a questão da finitude e do destino irônico
do homem. Cartola, com sua elegância natural, estaria mais próximo de algum
filósofo francês da belle époque, talvez Henri Bergson.
Bossa nova...
Péricles: Pensando assim no geral, eu diria que a
Bossa Nova estaria mais próxima dos filósofos da liberdade e da vida em
equilíbrio com a natureza, os maravilhosos Emerson e Thoreau, norte-americanos
do século XIX.
Grupo Música Nova...
Péricles: Não conheço muito bem o trabalho e os
músicos do grupo Música Nova, mas pelo que sei, e me baseio aqui principalmente
nas composições que conheço de Gilberto Mendes, a linguagem musical em geral -e
suas estruturas- é o que lhes interessa acima de tudo. Portanto, acho razoável
tentar aproximá-los de filósofos da linguagem ou do estudo dos signos em geral,
como Saussurre e Peirce.
Tropicália…
Péricles: O tropicalismo já se identificou
filosoficamente com a antropofagia de Oswald de Andrade. O que não é pouco.
Augusto de Campos que o diga. Por outro lado, a valorização de um certo impulso
vitalista na defesa de manifestações culturais, ou mesmo de alguns artistas,
renegados por um certo “bom gosto” oficial (como a chamada “música brega”, ou
mesmo a “jovem guarda”), enfim o “dizer não ao não” explicitado na canção “É
proibido proibir” de Caetano, pode aproximar o movimento do Nietzsche defensor
da vida como afirmação total, como um Sim irrestrito.
Punk nacional…
Péricles: Não sei em que grupos ou artistas você
está pensando, mas se for no movimento como ele aconteceu no final dos anos 70
e começo dos 80, com grupos como Sex Pistols, na Inglaterra, ou Camisa de Vênus
e Ratos de Porão, entre outros, aqui, acho que eles também estariam ligados a
um certo "vitalismo" mais adolescente (o que também me agrada)‚ mais
focado numa rebeldia intermitente.
Eu
me lembro que tem um grupo, ou tinha, chamado “Não religião”. Schopenhauer e
Nietzsche, em muitos aspectos, me parecem também indicados para esse caso.
Estendendo a analogia um pouco, gosto muito dos textos de Timothy Leary, um
filósofo muito ligado à cultura rock dos anos 60, sobre os ciberpunks.
Rap paulista...
Péricles: Acho o Mano Brown, dos Racionais MC's,
um narrador excepcional: objetivo, conciso, atento às nuances da história que
ele está contando e sempre procurando relacionar os personagens a fatos,
situações e contextos sociais precisos. Aliás, esta ida e vinda entre o
individual e o social é uma característica do melhor rap, em qualquer língua.
Acho então que um filósofo ideal, neste caso, seria um que fosse uma mistura de
Marx com Montaigne.
Por que você nunca caiu nas graças –ou nas desgraças- do mercado? Por elegância? Por discrição? Para manter a liberdade de criação?
Péricles: Se não existissem mercados, não
existiriam as cidades, pelo menos como nós as conhecemos. Se não existissem as
cidades como nós as conhecemos, não existiria música tal como é, de maioria ou
minoria de massa, e isso desde muito antes da “era das comunicações”.
Eu
adoro a vida urbana e não tenho vontade nenhuma de morar longe dela e de suas
“redes”. Portanto, não me sinto ameaçado pelos “mercados” de música, nem faço o
que faço com o objetivo de me excluir deles. Antes, gosto de saber e de mostrar
que o que faço está “ligado” de diversas maneiras às diversas correntes e
fluxos, a “dialetos” musicais e poéticos que me antecederam ou que me são
contemporâneos. Não me sinto numa contramão. Pelo contrário, me sinto,
conservando a metáfora urbana, numa avenida larga com muitas pistas e sentidos.
link-se
Carlos Adriano
É cineasta e mestre em cinema pela USP. Rrealizou “Remanescências” (aquisição/coleção The New York Public Library), “A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha” (melhor curta documentário Chicago Film Festival), “O Papa da Pulpi” e “Militância”. O Festival de Locarno exibiu em agosto de 2003 a mostra completa de seus filmes.
É cineasta e mestre em cinema pela USP. Rrealizou “Remanescências” (aquisição/coleção The New York Public Library), “A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha” (melhor curta documentário Chicago Film Festival), “O Papa da Pulpi” e “Militância”. O Festival de Locarno exibiu em agosto de 2003 a mostra completa de seus filmes.
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Funk carioca é um gênero praticado nos bailes funk do subúrbio do Rio, ou um
movimento de que fazem parte, por exemplo, o grupo Bonde do tigrão e a Tati
Quebra- barraco. “Batidão” é uma espécie de apelido para o estilo rítmico, em
geral feito com programação eletrônica, desse movimento cultural. “De leve” é o
nome de um funkeiro de Niterói, portanto fluminense, e que inventou o tal
“estilo foda-se”, que, no caso, se refere principalmente às letras de suas
composições.